sábado, 8 de maio de 2010

Sindrome de Sjogren

A síndrome de Sjögren (SS) é uma doença sistémica auto-imune, de progressão lenta, que afecta predominantemente mulheres entre a terceira e quarta décadas de vida, e que se caracteriza histologicamente por infiltração linfoplasmocitária das glândulas exócrinas e outros órgãos.

De acordo com a topografia e extensão da linfoproliferação, o espectro da doença varia entre um distúrbio amplamente restrito às glândulas exócrinas (exocrinopatia auto-imune), responsável pela denominada síndrome ou complexo seco, até um distúrbio sistémico com diversas manifestações extraglandulares1,2. Qualquer órgão é um alvo potencial para a invasão linfoplasmocitária directa ou para sofrer os efeitos decorrentes quer da produção patológica de autoanticorpos quer dos fenómenos vasculíticos que acompanham o processo patológico3.

A SS é hoje uma entidade amplamente caracterizada e peculiar pelo polimorfismo das suas manifestações. No entanto, nem sempre ela é reconhecida e muitos dos casos têm não só uma considerável demora diagnóstica, como são erroneamente confundidos com múltiplas outras patologias. O presente trabalho tem como objectivo fazer uma revisão das principais manifestações neurológicas na SS, uma área que nas últimas décadas tem sido alvo de grande interesse e investigação.

O primeiro relato de manifestações neurológicas na SS reporta a Henrik Sjögren, que, em 1935, na sua monografia, descreve um paciente com parésia facial bilateral e alterações sensitivas transitórias da córnea e pele da face indicando envolvimento tanto do V como do VII pares cranianos5,6. Desde então vários estudos vieram demonstrar que as complicações neurológicas podem afectar tanto o sistema nervoso periférico (SNP) como o sistema nervoso central (SNC). Contudo, a frequência e tipo de envolvimento neurológico na SS permanece controverso, possivelmente devido a critérios de diagnóstico heterogéneos e não uniformizados para a SS, além de que muitas alterações neurológicas subclínicas poderão não ser diagnosticadas6,7.



Sistema nervoso periférico



As neuropatias periféricas representam as complicações neurológicas mais comuns desta síndrome, afectando cerca de 10% a 20% dos doentes4,7,8. Quando consideradas as neuropatias subclínicas, reveladas por estudos electrofisiológicos sistemáticos, a prevalência poderá atingir os 50%7. Além disso, a disfunção neuropática, sobretudo se sensitiva pura, pode preceder os sintomas clássicos da SS por um intervalo médio de 24 meses e pode mesmo dominar o quadro clínico da doença3,8, o que pode contribuir para uma subestimativa do problema.

Várias formas de neuropatia têm sido descritas no contexto da SS, incluindo polineuropatia simétrica distal, neuronopatia sensitiva, mononeuropatia (múltipla), neuropatia autonómica e várias combinações destes distúrbios.

A existência de diferentes tipos de neuropatia parece indicar que diferentes mecanismos patológicos poderão estar envolvidos6.

Os doentes com neuropatia simétrica distal podem apresentar polineuropatia sensitiva pura ou sensitivomotora.

A neuropatia sensitiva distal e simétrica é a mais comum nestes doentes6. Geralmente começa com parestesias e/ou hiperalgesia a nível dos pés6,11. O início é tipicamente insidioso e a evolução lentamente progressiva em sentido proximal, acabando por determinar graus ligeiros a moderados de défices e sintomas.

Os estudos neurofisiológicos revelam perda simétrica e distal de fibras sensitivas finas, com ou sem atingimento ligeiro das fibras motoras6. Dado o atingimento selectivo dessas fibras, as manifestações típicas são as disestesias dolorosas e em queimor, com redução da sensibilidade dolorosa e térmica, mas preservação da propriocepção, da função motora e até mesmo dos reflexos ósteo-tendinosos profundos. O comprometimento da sensibilidade táctil é variável, mas se estiver preservada temos um padrão típico de dissociação sensitiva.

Os fenómenos de vasculite poderão ser a principal causa destes distúrbios já que mais de um terço dos doentes com vasculite cutânea acabam por desenvolver alterações axonais polineuropáticas, ainda que possam ser ligeiras6,8. De facto, a biopsia dos nervos revela quase sempre um infiltrado linfocítico a rodear os pequenos vasos que irrigam o nervo e, ocasionalmente, a inflamação chega a destruir completamente a parede do vaso (vasculite necrotizante). Isto interfere com a normal irrigação do nervo e, consequentemente, com a sua função normal3,9.

Este tipo de neuropatia é frequentemente acompanhado de anormalidades serológicas – aumento da VS, factor reumatóide e ANA positivos e anti- SSB (La) e SSA (Ro) positivos em 29 e 46 % dos doentes11, respectivamente, o que indicará uma SS clínica e imunologicamente mais activa, com manifestações sistémicas mais exuberantes e com envolvimento do SNC mais pronunciado1.

A neuronopatia sensitiva pura é a única que é característica da SS, não ocorrendo em nenhuma outra doença inflamatória5,6. Contudo, esta não é específica da SS dado que é uma manifestação paraneoplásica bem conhecida e frequente, sobretudo do carcinoma de pequenas células do pulmão.

Os sintomas nos doentes com SS são dominados pela perda da sensibilidade proprioceptiva com consequente marcha atáxica, inabilidade dos movimentos precisos, pseudoatetose e incapacidade de localizar os membros no espaço6.

As alterações geralmente iniciam-se a nível das extremidades, acabando por atingir os segmentos proximais, tronco e face11. Este padrão difuso com envolvimento proeminente de dermátomos proximais difere daquele que se observa nas neuropatias distais. O envolvimento sensitivo pode ser simétrico ou não e, em alguns casos pode haver discrepância entre os sintomas a nível dos membros superiores e inferiores. O curso clínico é variável. Tende a ocorrer cedo no curso da SS, podendo mesmo antecipar o envolvimento clínico glandular e as anomalias serológicas3,8,11. Independentemente disso, o início dos sintomas é geralmente indolente com evolução lenta e progressiva para a cronicidade, mas estão descritos casos agudos e outros nos quais a condição veio a estabilizar e mesmo a melhorar espontaneamente com o tempo6,9,11.

Ao exame físico, os sinais estão predominantemente relacionados com a perda funcional de grandes fibras sensitivas. Ao contrário das polineuropatias que acometem as fibras finas, as polineuropatias das fibras calibrosas caracterizam-se por défice da propriocepção, com diminuição da sensibilidade vibratória e do sentido posicional, instabilidade (Romberg positivo), supressão dos reflexos ósteo-tendinosos e disfunção motora. As alterações na sensibilidade dolorosa e térmica são mínimas e caso haja alguma disestesia, o padrão tende a ser de formigueiro ou sensação em faixa4,6. Nos estados graves de comprometimento da sensibilidade profunda, o doente não consegue deambular ou mesmo ficar de pé sem apoio e se sentar sem ajuda. Estes doentes também apresentam movimentos involuntários contínuos, algumas vezes serpiginosos (a denominada pseudo-atetose), envolvendo as mãos, principalmente quando de olhos fechados. A incapacidade apresentada por estes doentes pode chegar a níveis extremos.

Frequentemente está associada a neuropatia autonómica, a envolvimento do trigémio e à síndrome de Adie.

Os estudos de condução nervosa revelam ausência ou baixa amplitude dos potenciais de acção sensitivos, com condução nervosa motora normal, o que corrobora a aparente preservação da função motora ao nível do exame físico6,9,11, e a ausente ou mínima evidência de desnervação na electromiografia9.

O mecanismo patogénico parece ser uma ganglionite das raízes dorsais com a biopsia a esse nível revelando um processo inflamatório caracterizado por infiltração perivascular e perineuronal de linfócitos T. São observados neurónios vacuolizados e nódulos de Nageotte que indicam morte neuronal, apesar do número de neurónios não estar grosseiramente diminuído4,5,6,9. A biopsia de nervos periféricos revela perda maciça de fibras, frequentemente com infiltrado inflamatório perivascular, mas sem evidência de vasculite9,11. As alterações trigeminais parecem também ser devidas a um mecanismo inflamatório semelhante a nível do gânglio de Gasser, com o gânglio ciliar podendo também estar envolvido devido à frequente associação da neuropatia sensitiva com o síndrome de Adie. Mecanismos humorais também parecem estar envolvidos, como indicam estudos em que foram isolados anticorpos antineuronais no soro de vários doentes, capazes de se ligarem aos neurónios ganglionares das raízes dorsais9,10.

A neuronopatia sensitiva da SS deve ser diferenciada da neuronopatia carcinomatosa, a qual é seguramente inexorável, progressiva, tipicamente subaguda, mais relacionada com a perda de fibras sensitivas pequenas, muitas vezes associada a envolvimento cerebeloso e oculomotor e caracterizada pela presença de anticorpos antiganglionares específicos (e.g. anti-Hu), proteinorráquia e pleocitose linfocítica4,11. Na SS, a neuronopatia sensitiva está muitas vezes associada a disfunção autonómica e a um infiltrado inflamatório na biopsia do nervo sural6.

As mononeuropatias incluem neuropatias cranianas, mononeuropatias múltiplas e neuropatias compressivas. A mais bem conhecida é a neuropatia trigeminal sensitiva, caracterizada pela hipostesia uni ou bilateral e lentamente progressiva da face, muitas vezes associada a disestesias. O envolvimento motor do V par é raro. As outras neuropatias cranianas incluem a neuropatia óptica, neuropatia facial com parésia facial e a neuropatia vestibulococlear com consequente surdez neurosensitiva, a última parecendo estar relacionada com distúrbios na imunidade humoral nomeadamente com anticorpos anticardiolipina6.

A mononeuropatia múltipla é considerada como sendo rara na SS, contrariamente ao que se encontra descrito para as outras conectivites, apesar de um estudo indicar uma prevalência tão alta como 24 %6,11. Ela pode afectar o nervo peroneal, sural, tibial, cubital, mediano e radial. É importante o seu diagnóstico dado que é geralmente causada por fenómenos vasculíticos num doente com SS conhecida. Se a electroneuromiografia revela uma perda axonal multifocal, o diagnóstico presuntivo de neuropatia vasculítica pode ser feito, não sendo necessária a biopsia para iniciar tratamento imunossupressor.

Cerca de 20% dos doentes apresentam neuropatia compressiva, usualmente a síndrome do túnel do carpo, com a electroneuromiografia revelando prolongamento da latência motora e sensitiva, contrastando com os achados nas neuropatias vasculíticas.

A neuropatia autonómica, ainda que rara, tem vindo a ser descrita como uma manifestação isolada da SS ou como um achado adicional nos doentes com neuropatia sensitiva6,8. No último caso, uma ganglionite parassimpática pode ser sugerida como mecanismo patogénico6, enquanto que, na neuropatia autonómica isolada, fenómenos vasculíticos deverão ser responsáveis pelas alterações8. As manifestações principais são a anidrose, a disfunção parassimpática cardíaca, a hipotensão ortostática e a síndrome de Adie3,6.

Mais uma vez se comprova o envolvimento sistémico da SS e a necessidade de a considerar como diagnóstico diferencial nos doentes com neuropatia autonómica dita idiopática8.



Recentemente foi sugerido uma síndrome clínica distinta na qual uma neuropatia periférica constitui a queixa principal dos doentes. Esta é geralmente crónica e sensitiva, com défices variáveis que atingem fibras nervosas de pequeno e grande calibre, e que é devida sobretudo a uma poligangliopatia. A disfunção autonómica subclínica é comum. Sintomas da síndrome seca estão ausentes ou são apenas ligeiros para não serem valorizados e referidos pelo doente, sendo necessária uma história completa e exaustiva e testes de confirmação para se provar o envolvimento glandular. As características clínicas das doenças reumatológicas estão muitas vezes ausentes e os marcadores sorológicos de síndrome inflamatório sistémico ou de um processo autoimune são negativos ou inespecíficos6,9. Estas características apontam para um processo mais limitado que o SS clássico, no qual as anomalias glandulares e sistémicas são mínimas ou estão ausentes, levando a que o processo subjacente à neuropatia (a SS) seja subdiagnosticado.



Sistema nervoso central



O envolvimento do SNC na SS é relativamente frequente, com uma prevalência estimada em cerca de 20 a 25%. Tanto o cérebro como a espinhal medula podem estar envolvidos13,14,15.

O envolvimento cerebral pode levar a anomalias neurológicas focais ou difusas. Os défices focais incluem hemiparésias, hemianalgesias, afasia/disartria, crises convulsivas e sintomas e sinais sugestivos de envolvimento extrapiramidal, cerebeloso ou do tronco cerebral. As manifestações difusas incluem encefalopatia aguda ou subaguda, meningite asséptica recorrente, disfunção cognitiva, demência ou anomalias psiquiátricas3,5,6,7. Distúrbios afectivos, especialmente ansiedade e ataques de pânico, são as anomalias psiquiátricas mais comuns. Psicose, por outro lado, é uma manifestação rara6,7,14.

O envolvimento medular pode manifestar-se como mielite transversal, mielite crónica progressiva, síndrome de Brown-Sequard, bexiga neurogénica ou doença da via piramidal6,12.

De particular importância é a síndrome de esclerose múltipla like. Nestes doentes, os achados clínicos, electrofisiológicos, parâmetros do líquor e achados na RMN são indistinguíveis dos observados na esclerose múltipla, sendo muitas vezes difícil de distinguir a esclerose múltipla primária da SS com mielopatia crónica13. Assim, vários autores defendem, actualmente, que a SS deve ser sistematicamente investigada em todos os doentes com esclerose múltipla, como diagnóstico diferencial a ter em conta, mesmo não estando definido se as duas entidades podem ser encaradas separadamente ou se a SS associada à esclerose múltipla pode ser definida como SS secundária, dado que pode vir a ter importância em termos terapêuticos, nomeadamente para fármacos que estão presentemente a ser ensaiados e que parecem vir a ter um futuro promissor no tratamento da esclerose múltipla13.

Do ponto de vista patogénico, o envolvimento do SNC parece ser decorrente de um processo inflamatório secundário a uma vasculopatia cerebral de pequenos vasos. Os linfócitos B e plasmócitos atravessam a barreira hematoencefálica lesada, infiltrando-se na substância cerebral, medula e leptomeninges e elevando à síntese intratectal de IgG3,6. Também ocorrem microenfartes e microhemorragias.

A análise do líquor revela pleocitose de padrão reactivo, proteinorráquia, aumento dos níveis de IgG e bandas oligoclonais, compatíveis com um processo inflamatório3,6. A TAC e a angiografia são geralmente normais. O electroencefalograma, usualmente anormal, pode mostrar um padrão lento, baixa amplitude ou focos epileptogénicos, e o teste de potenciais evocados pode revelar anormalidades a nível das vias visuais, auditivas ou sensitivas somáticas3,12.

A RMN cerebral, considerado o método mais sensível, demonstra múltiplas regiões de hipersinal em T2 e imagens de alta densidade protónica na substância branca periventricular e subcortical, consistente com um processo de desmielinização6,13.

Histologicamente, o tecido cerebral revela infiltrados inflamatórios mononuclerares perivasculares/vasculares sugerindo um processo vasculítico. Um aumento da síntese de TNF pelos linfócitos circulantes, os quais podem infiltrar os espaços perivasculares e a parede dos vasos cerebrais, também parece estar implicado.



Conclusões



Contrariamente ao que seria de esperar, nem sempre o atingimento lacrimal e salivar na SS é exuberante. Muitas vezes é a presença de outros sinais sistémicos suspeitos que levam o médico a investigar se uma SS não será responsável pelas alterações1. É a variedade de manifestações clínicas aliada às lacunas quanto à história natural da doença, à sua patogénese, incidência na população em geral, critérios de diagnóstico e variedades ou subtipos da mesma doença, que explica o facto de que actualmente ainda se verifica um atraso médio de cerca de 9,5 anos entre o início dos sintomas e o diagnóstico de SS13.

Actualmente, a SS é entendido como uma doença autoimune sistémica na qual a frequência das manifestações neurológicas é de cerca de 20%. As neuropatias periféricas são as mais comuns e traduzem-se geralmente como parestesias ou ataxias sensitivas.

O diagnóstico de SS deve ser considerado em muitas situações, incluindo em quadros de neuropatia de origem desconhecida, bem como no contexto de uma patologia da via piramidal ou de envolvimento do SNC, incluindo a disfunção cognitiva isolada7.

É importante referir que a sintomatologia a nível central pode levar-nos, de forma equívoca, a diagnosticar outras entidades como a esclerose múltipla, doença de Parkinson, meningite recorrente, esclerose lateral amiotrófica e vários tipos de demência.

Porque os doentes muitas vezes não se queixam de sintomas de xeroftalmia ou xerostomia, além de que manifestações neurológicas inespecíficas podem ser o primeiro sinal, o diagnóstico clínico da SS requere, muitas vezes, um alto índice de suspeição.

Sintomas sistémicos inespecífcos como adinamia, astenia, fadiga, febre prolongada, artralgias, Raynaud, bem como a presença de sintomas de uma conectivite não diagnosticada devem ser despistados. Um questionário intenso e global acerca de sintomas clássicos do SS, bem como um exame clínico detalhado pode apoiar a suspeita diagnostica. Sobretudo em doentes com patologia imunológica prévia, em que a coexistência do SS é frequente, é obrigatório uma anmnese e exame dirigidos. Perante a suspeita, a existência de marcadores de actividade biológica, ainda que inespecíficos, darão maior consistência ao diagnóstico de SS, o qual será praticamente definitivo fundamentalmente após o exame oftalmológico, o estudo das glândulas salivares e de uma biopsia labial12.

O reconhecimento do SS nos doentes com envolvimento nervoso é importante. Se por um lado, mesmo que assintomáticas, a xerostomia e xeroftalmia podem levar a complicações locais graves, potencialmente evitadas se instituir-se tratamento adequado, por outro, determina uma causa inflamatória e potencialmente tratável para a neuropatia de modo a evitar complicações a longo termo que poderão reduzir a eficácia dos tratamentos disponíveis.

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